quinta-feira, 21 de março de 2013

A Herança Ingrata.




A porta abre fazendo um rangido que assusta os gatos. Ela entra com uma tigela cheia de leite até a borda, a mesma tigela que tinha amanhecido seca.

-A benção, minha vó.
-Deus lhe abençoe, minha netinha.

O tom de pele dela é diferente do meu, eu sou branca; pálida quando passo o dia em casa e rosa quando tomo sol. A cor da pele da minha neta eu não sei, é algo entre o tom de pele que predomina entre os indianos e o que predomina entre os africanos. O pai da minha neta é negro, a minha filha era branca. A menina nasceu então com uma cor intermediária entre os dois.

Ela cuida de mim e dos meus gatos. Num futuro próximo morrerei, daí minha neta passará a cuidar somente dos meus gatos. Até que, de saudade, cada um dos meus gatos vá morrendo também e minha neta possa viver sem essa herança ingrata. Pois sei que essa menina não gosta de gatos, ela cuida deles para me fazer bem, para cuidar de mim.

-Já comeu hoje, voinha? Eu deixei um bolo de milho na mesa e acho que a senhora nem triscou nele!
-Comi do bolo, sim, tava bom.
-Mas vó, o bolo tá lá, inteirinho! A senhora nem comeu, não, vou trazer aqui um pedaço!

Ela sai do alpendre e vai na cozinha buscar o bolo. A verdade é que não comi do bolo, eu menti. Eu minto, minto sem perceber, minto para não discutir, minto para poupar palavras. É tão mais fácil, tira um peso enorme dos ombros. Acho que quando a gente chega numa idade a morte dá um tapinha nas nossas costas e pergunta: ‘você vai querer ser um velho calminho e silencioso ou vai querer ser daqueles que dão palpite em tudo?’ Eu escolhi ser uma velha tranquila, resignada, de poucas e serenas palavras.

A minha neta aparece de volta com um pedaço de bolo e o traz até a cadeira de balanço onde estou sentada. O bolo é bom, mas não tenho fome. Se eu tivesse fome, comia o bolo inteiro, mas não. Ela não sabe que eu minto por uma comodidade estranha, acha que eu perdi a lucidez. Ela me olha com um uns inquisidores olhos negros, me assiste comendo, para ver se eu como tudo. E como os olhos dela brilham, são pretos, duas bilas escuras e brilhantes e me olham e me dão medo. Ela parece a minha mãe. Mas a minha mãe era branca e tinha os olhos verdes que eu não herdei.

-Comi já, leva aqui o prato – e ela pega o prato das minhas mãos com medo de quebrar (os pratos ou as minhas mãos, não sei).
-A senhora devia se cuidar mais, ver se come mais.
-Não preciso me cuidar, pois já tenho você que cuida de mim, Sebastiana.
-Meu nome é Lívia, vovó.
-Mas o nome da minha mãe é Sebastiana.

Minha netinha perde o olhar no chão e leva o prato para a cozinha. Eu não menti, dessa vez não foi por comodidade. Eu me enganei, esqueci, troquei os nomes. Ela agora sabe, tem a confirmação, que fiquei gagá. E eu, com o pouco de lucidez que tenho me dou conta que estou ficando senil. É tão triste chorar e lembrar dos olhos azuis da minha mãe e dos negros e inquisidores da minha neta e não querer esquecê-los, jamais.

E depois, num lapso da memória, recordar que os olhos da minha mãe eram verdes e não azuis.

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