quinta-feira, 21 de março de 2013

Isso Não é Uma Revista Literária # 5


Você senta, esfria a cabeça, tenta não pensar em mais nada, só em escrever alguma coisa. As vezes dá certo. As vezes você só tem que esperar a inspiração. E existem pessoas que não acreditam em nada desse negócio de inspiração. Escrever é trabalho, dá trabalho, mas quando você encontra alguns bons poemas por ai, alguns bons contos de bons escritores por ai, vale a pena procurar, como vale pra escrever.

Valeu a pena esperar pelas contribuições para essa nova edição, e vai valer a pena pra você, que vai parar tudo que está fazendo pra ler o que estamos escrevendo.

Bárbara Lia nessa edição, surge com poemas de seu mais novo livro, onde ela de forma silenciosa e poética conversa com Emily Dickinson. Paola Benevides mandou um texto foda, destruidor, que fala da infeliz vida  de muitos nos tempos de hoje. Camila Fraga com seu texto forte e doloroso aparece aqui pela primeira vez. Assim como também Lilith A, jovem escritora dessa minha cidade forte Fortaleza, que nos aparece com um conto muito bonito, e muito triste também.

Como falei, pare o que você está fazendo e leia essa nova edição do e-zine. Vai valer.

Carlos Alberto Nascimento

(Edição preparada ao som de John Coltrane - My Favorite Things)

A Flor Dentro da Árvore.



“Dentro da minha flor me escondo...”
Baile das harpias
Em árvores carbonizadas
Rindo do fim
Fumaça sangra
Nosso jardim
A alma do éden
Adoentada.


“Até que os serafins acenem com seus chapéus brancos”
Não nasci para resfriar o mundo
Neste lerdo cortejo de omissões
Estas palavras interditas
Suspensas

Não vim quebrar as pernas do sol
Silenciar cada bemol
Não vim para arrebentar o anzol
Do velho de Hemingway
Sou mar e trovão no coração
Nasci para amar sem lastro
Para dançar no pátio
It is my way

“Doce como o massacre de sóis”
Oito canhões na praça de guerra
Apontam para o peixe
Que traz a paz nas guelras

Quatro gaivotas suicidas
Lambem o babado azulado
Do triste mar-flamenco

Lembro um filme de Babenco:

Ana e o voo
Mariposas no quarto lúgubre
Suas mãos em concha
A esmagar a eternidade insalubre


“A lentidão das palavras do arcanjo ao acordá-la”
O sagrado despe as ilusões
e abraça as árvores mortas
Suas folhas azul esmaecido
qual manto da Virgem de Cambrai
Os ossos das árvores adoeceram
e elas morreram – azuis -
Antes que tornassem brancos
os seus cabelos


“Sinal cifrado para enovelar o divino”
Trinta e dois ventos
da rosa dos ventos
Vinte e um gramas
do peso da alma
Oito países
a comandar a Terra
UM Deus louco
pelas ruas bombardeadas


“O pedigree do mel não diz nada a uma abelha”
O rancor dos homens
Contaminou as flores 
As abelhas
Morreram de cólera
Adocicada
Último zumbido 
Acordou o Sol
Em cadência afinada
Qual canção do Vangelis

Farmacopeia.




A solidão é maior que o mundo inteiro. Raça humana que não se abraça, quando resolve fazer parte da história do outro, a tinta do tinteiro se afasta e as palavras ressecam. Amarelam-se as páginas que se viram feito caras, feito as costas, feito as portas que se batem quando são postas as vidas em aberto. Tudo tem um preço. Nada tem valor. Alguns livros são comprados pela capa, enfeitam prateleiras, viram alimento para traças. Vendem-se mais dramas e catástrofes que as fábulas de cor rosa. A tolice do homem está em querer ler na ficção o que acontece na realidade, porém com doses mais inacreditáveis de sofrimento. Homeopatas! Sangue nos olhos dos outros é refresco de groselha. O pavor se pavoneia em chantagem, abre margem para a comoção. Aplaude a plateia. Vítimas de seus próprios egos, emoção embotada na garganta, chaga sem prego. Jesus nos salvou mesmo ou se perdeu na gaveta dos dízimos? Diz-me o quê em relação à sua existência? Está valendo a pena de morte? A cada febre terçã faz-se uma novena. À própria sorte, que graça teria um bilhete premiado sem que fosse compartilhada a notícia? Escondem-se os abastados dos interesseiros agora por cultivarem a ilusão da jactância, o fato é que os pretensos ricos sentem inveja dos esfarrapados no quesito alma. Ninguém sabe se aturar sozinho, na verdade, ninguém se quer sem o próximo, que quanto mais aproximado está, aí se proliferam os defeitos feito baratas expulsas dos ralos. Quando não, as qualidades são aproveitadas por tempo limitado, manipuladas, pois hoje em dia tudo é reciclável. Poucos não são os rasos. Raros são os maduros sustentáveis.


Refém do chefe, do marido, da mãe, da televisão, do partido, da contrapartida, da contravenção... Viciado em gula, luta no tatame, funkpancadão, aspartame, shake diet, Chuck Norris, cachaça com ou sem limão... Dependente físico da obesidade mórbida, da foda fora do casamento, do ajuntamento falido, do palavrão frente às crianças, da moda em 30, 60, 90 sem entrada e sem juros... Afeito a cheques sem fundo, fundo de poço, ostentação, esteticista, açougue, maltrato animal, agiotagem fatal, cigarros e Marijuana (foi ela quem disse certa vez trajando vermelho até os olhos: - Não se chega ao pó senão por mim). Tarja preta é o remédio para a censura. Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra, pode ser de crack, pode subir o telhado de vidro alheio, pode ser o equivalente em cacos do seu espelho. É de doer o coração dos mais fracos, porque os mais fortes só aprenderam a dormir sob efeito de comprimidos. Por um triz, Rivotril. Uma estaca de vampiro ao menos estanca sangramento. Morre-se de hemorragia interna ou na internação. Aceitamos só visitas íntimas, não aceitamos cartão, a porta da área de serviço está aberta a ladrão de strip poker, negros com micropênis, prostitutas universitárias, freiras lésbicas e padres pedófilos. Não damos crédito à velhice, pois antes enfrentar a cadeira elétrica que a de rodas ou balanço. Vaidade com a idade aumenta. Vamos à queda de braço, que não se dá a torcer. Torcida uniformizada só serve mesmo para bater. Mas temos esperança que a paz um dia venha em cápsulas.

O Primeiro.




Caminhava lento por ruas da cidade. Um cigarro na boca. Perto das 5 horas. Já não tinha um sol tão forte acima de minha cabeça. Caminhava despreocupado, atento por ruas sujas, os pés quase pisando em poças d´água, lama, sujeira nos cantos das calçadas, frutas podres jogadas. Cheiro de mijo. Algumas ruas por onde ando têm cheiro de mijo. Em algumas o cheiro é mais forte. Nesta onde caminho é mais fraco. Mesmo assim ainda dá pra sentir.

Mais um quarteirão, e então passo em frente a uma igreja que nunca entrei. Curioso pensar nos vários lugares nesta cidade formiga formigueiro onde nunca pus os pés. Faço o sinal da cruz e atravesso a rua. A pista molhada e hoje sequer choveu. Cidade suja, calçadas sujas. Dobro a esquina, avisto a casa, agora mais próxima, dou uma última tragada no cigarro, a fumaça sobe transformando-se em nuvem, nevoeiro sobre os olhos. Jogo a ponta do cigarro no chão. Cidade suja.

Atravesso a rua, olho para os lados, não vem carro. Estranho as ruas estarem tão vazias em plena sexta-feira, agora 5 da tarde. Os pés tocam a calçada, o coração dentro do peito dá um soluço. Aproximo-me do portão de ferro quadriculado com pintura branca descascando. Lá dentro uma mulher me vê e vem abrir o portão. Passos arrastando chinela. Um sorriso. Vai abrindo para que eu entre.

-A Kelly está? Pergunto.
-Tá sim, lá dentro. Entra e espera, já vou chamar. Responde com voz natural, despreocupada.

Ela se retira e segue em um corredor. A sala não muito grande. Uma TV no canto, dois sofás formando um L, uma mulher sentada no sofá de dois lugares com as pernas atrepadas em um banquinho, bebe cerveja e assisti TV, me olha e depois volta para a TV. Não demora muito e dos fundos da casa a outra volta arrastando as chinelas.

-Ela já tá vindo. Pode sentar aí, quer uma cerveja? Fala sem olhar para mim.

Respondo que não com a cabeça sem saber se ela viu ou não. Já tinha bebido e hoje meu dinheiro está curto. Sento no sofá de 3 lugares. A mulher senta do lado da outra que bebe cerveja e vê TV. Senta do lado dela e puxa uma serrinha do canto do sofá, e então começa a passar nas unhas.

Não foi difícil encontrar o lugar, já conhecia a rua, conhecia a casa de vista. Nova moradia de Kelly.

Dos fundos da casa ela surge com seu andar mole, um tipo de desfile. Me olha de longe e sorri. Eu levanto quando ela se aproxima. Sorriso em seu rosto.

-Veio cedo, meu amor. Ela fala.

Dou um sorriso para ela.

É que queria ser o primeiro.

Tem essa coisa que chamam de felicidade e eu não consigo entender.




Tem essa coisa que chamam de felicidade e eu não consigo entender. Esses eternos sorrisos e piadas prontas, que acabam sendo a própria piada. Igual quando tu pega um táxi e o motorista é simpático e feliz pra burro, daquele jeito que faz você até temer o que vem por trás de tanta simpatia e alegria às oito da manhã. Os projetos que você não terminou, aquele CD da Patti Smith que você sempre escuta pela metade, porque as coisas que ela canta quase doem. É que cê sempre tá esperando a chuva, as pernas cruzadas pra parecer comportada o suficiente, sempre esperando que o cigarro queime sozinho pra que teus pulmões não se fodam, esperando aquilo que você não pôde ter, esperando aquela merda de olhar triste, que o mar pare de se mexer. E aquela voz bonita te dizendo: “o mar é uma coisa feia pra caralho” e tu concorda com um sorriso triste, sabendo que até a coisa mais bonita é feia pra caralho. E pensa onde as pessoas guardam a melancolia, se elas conseguem ter algum resquício de melancolia no meio de tanta felicidade e simpatia. Você não entende. Nunca vai entender. E talvez por isso mesmo tu se torne cada vez mais triste e antipática.

A Herança Ingrata.




A porta abre fazendo um rangido que assusta os gatos. Ela entra com uma tigela cheia de leite até a borda, a mesma tigela que tinha amanhecido seca.

-A benção, minha vó.
-Deus lhe abençoe, minha netinha.

O tom de pele dela é diferente do meu, eu sou branca; pálida quando passo o dia em casa e rosa quando tomo sol. A cor da pele da minha neta eu não sei, é algo entre o tom de pele que predomina entre os indianos e o que predomina entre os africanos. O pai da minha neta é negro, a minha filha era branca. A menina nasceu então com uma cor intermediária entre os dois.

Ela cuida de mim e dos meus gatos. Num futuro próximo morrerei, daí minha neta passará a cuidar somente dos meus gatos. Até que, de saudade, cada um dos meus gatos vá morrendo também e minha neta possa viver sem essa herança ingrata. Pois sei que essa menina não gosta de gatos, ela cuida deles para me fazer bem, para cuidar de mim.

-Já comeu hoje, voinha? Eu deixei um bolo de milho na mesa e acho que a senhora nem triscou nele!
-Comi do bolo, sim, tava bom.
-Mas vó, o bolo tá lá, inteirinho! A senhora nem comeu, não, vou trazer aqui um pedaço!

Ela sai do alpendre e vai na cozinha buscar o bolo. A verdade é que não comi do bolo, eu menti. Eu minto, minto sem perceber, minto para não discutir, minto para poupar palavras. É tão mais fácil, tira um peso enorme dos ombros. Acho que quando a gente chega numa idade a morte dá um tapinha nas nossas costas e pergunta: ‘você vai querer ser um velho calminho e silencioso ou vai querer ser daqueles que dão palpite em tudo?’ Eu escolhi ser uma velha tranquila, resignada, de poucas e serenas palavras.

A minha neta aparece de volta com um pedaço de bolo e o traz até a cadeira de balanço onde estou sentada. O bolo é bom, mas não tenho fome. Se eu tivesse fome, comia o bolo inteiro, mas não. Ela não sabe que eu minto por uma comodidade estranha, acha que eu perdi a lucidez. Ela me olha com um uns inquisidores olhos negros, me assiste comendo, para ver se eu como tudo. E como os olhos dela brilham, são pretos, duas bilas escuras e brilhantes e me olham e me dão medo. Ela parece a minha mãe. Mas a minha mãe era branca e tinha os olhos verdes que eu não herdei.

-Comi já, leva aqui o prato – e ela pega o prato das minhas mãos com medo de quebrar (os pratos ou as minhas mãos, não sei).
-A senhora devia se cuidar mais, ver se come mais.
-Não preciso me cuidar, pois já tenho você que cuida de mim, Sebastiana.
-Meu nome é Lívia, vovó.
-Mas o nome da minha mãe é Sebastiana.

Minha netinha perde o olhar no chão e leva o prato para a cozinha. Eu não menti, dessa vez não foi por comodidade. Eu me enganei, esqueci, troquei os nomes. Ela agora sabe, tem a confirmação, que fiquei gagá. E eu, com o pouco de lucidez que tenho me dou conta que estou ficando senil. É tão triste chorar e lembrar dos olhos azuis da minha mãe e dos negros e inquisidores da minha neta e não querer esquecê-los, jamais.

E depois, num lapso da memória, recordar que os olhos da minha mãe eram verdes e não azuis.