A porta abre
fazendo um rangido que assusta os gatos. Ela entra com uma tigela cheia de
leite até a borda, a mesma tigela que tinha amanhecido seca.
-A benção, minha
vó.
-Deus lhe
abençoe, minha netinha.
O tom de pele
dela é diferente do meu, eu sou branca; pálida quando passo o dia em casa e
rosa quando tomo sol. A cor da pele da minha neta eu não sei, é algo entre o
tom de pele que predomina entre os indianos e o que predomina entre os
africanos. O pai da minha neta é negro, a minha filha era branca. A menina
nasceu então com uma cor intermediária entre os dois.
Ela cuida de mim
e dos meus gatos. Num futuro próximo morrerei, daí minha neta passará a cuidar
somente dos meus gatos. Até que, de saudade, cada um dos meus gatos vá morrendo
também e minha neta possa viver sem essa herança ingrata. Pois sei que essa
menina não gosta de gatos, ela cuida deles para me fazer bem, para cuidar de
mim.
-Já comeu hoje,
voinha? Eu deixei um bolo de milho na mesa e acho que a senhora nem triscou
nele!
-Comi do bolo,
sim, tava bom.
-Mas vó, o bolo
tá lá, inteirinho! A senhora nem comeu, não, vou trazer aqui um pedaço!
Ela sai do
alpendre e vai na cozinha buscar o bolo. A verdade é que não comi do bolo, eu
menti. Eu minto, minto sem perceber, minto para não discutir, minto para poupar
palavras. É tão mais fácil, tira um peso enorme dos ombros. Acho que quando a
gente chega numa idade a morte dá um tapinha nas nossas costas e pergunta:
‘você vai querer ser um velho calminho e silencioso ou vai querer ser daqueles
que dão palpite em tudo?’ Eu escolhi ser uma velha tranquila, resignada, de
poucas e serenas palavras.
A minha neta
aparece de volta com um pedaço de bolo e o traz até a cadeira de balanço onde
estou sentada. O bolo é bom, mas não tenho fome. Se eu tivesse fome, comia o
bolo inteiro, mas não. Ela não sabe que eu minto por uma comodidade estranha,
acha que eu perdi a lucidez. Ela me olha com um uns inquisidores olhos negros,
me assiste comendo, para ver se eu como tudo. E como os olhos dela brilham, são
pretos, duas bilas escuras e brilhantes e me olham e me dão medo. Ela parece a
minha mãe. Mas a minha mãe era branca e tinha os olhos verdes que eu não
herdei.
-Comi já, leva
aqui o prato – e ela pega o prato das minhas mãos com medo de quebrar (os
pratos ou as minhas mãos, não sei).
-A senhora devia
se cuidar mais, ver se come mais.
-Não preciso me
cuidar, pois já tenho você que cuida de mim, Sebastiana.
-Meu nome é
Lívia, vovó.
-Mas o nome da
minha mãe é Sebastiana.
Minha netinha
perde o olhar no chão e leva o prato para a cozinha. Eu não menti, dessa vez
não foi por comodidade. Eu me enganei, esqueci, troquei os nomes. Ela agora
sabe, tem a confirmação, que fiquei gagá. E eu, com o pouco de lucidez que
tenho me dou conta que estou ficando senil. É tão triste chorar e lembrar dos
olhos azuis da minha mãe e dos negros e inquisidores da minha neta e não querer
esquecê-los, jamais.
E depois, num lapso
da memória, recordar que os olhos da minha mãe eram verdes e não azuis.